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Ofidismo

Snakebite; Bothrops; Crotalus; Micrurus; Lachesis

Acidente ofídico; Bothrops; Crotalus; Micrurus; Lachesis

Artigo de Revisão

OFIDISMO

* * Correspondência: Av. Multirão, 1868 – Setor Bueno Cep: 74215-240 – Goiânia – GO E-mail: pfabia@zaz.com.br F.M.O. Pinho, I.D. Pereira

Disciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, GOOfidismo

UNITERMOS: Acidente ofídico. Bothrops. Crotalus. Micrurus. Lachesis.

KEY WORDS: Snakebite. Bothrops. Crotalus. Micrurus. Lachesis.

INTRODUÇÃO

Os acidentes ofídicos representam sério problema de saúde pública nos países tropicais pela frequência com que ocorrem e pela morbi-mortalidade que ocasionam.

Existem no mundo aproximadamente 3000 espécies de serpentes, das quais de 10 a 14% são consideradas peçonhentas1. A OMS (Organização Mundial de Saúde) calcula que ocorram no mundo 1.250.000 a 1.665.000 acidentes por serpentes peçonhentas por ano, com 30.000 a 40.000 mortes2. A mortalidade dos acidentados varia nas diferentes regiões do mundo3. Na Ásia, principalmente na Índia, Paquistão e Birmânia, os acidentes ofídicos provocam de 25 mil a 35 mil óbitos por ano, sendo uma das serpentes mais importantes a Vipera russeli4. Na Nigéria, ocorrem 500 casos por 100 mil habitantes, com taxa de mortalidade de 10%5. Nos Estados Unidos, 12 a 15 dos 8 mil casos anuais são fatais, levando a uma mortalidade de 0,2%6. Na África, ocorrem de 400 a 1.000 mortes por ano, causadas principalmente pelas serpentes conhecidas como Naja4 .

No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem entre 19 mil a 22 mil acidentes ofídicos por ano3. Existem aproximadamente 250 espécies de serpentes, sendo que destas, 70 são peçonhentas. A maioria destes acidentes deve-se a serpentes do gênero Bothrops (jararaca, jararacuçu, urutu e outros) e Crotalus (cascavel), sendo raros os produzidos por Lachesis (surucucu, surucutinga) e Micrurus (coral)7.

Segundo a Coordenação Nacional de Controle de Zoonoses e Animais Peçonhentos ( CNCZAP ) do Ministério da Saúde, no período de 1990 a 1993 ocorreram 81.611 acidentes, com uma média de 20 mil casos/ano para o país. A média de incidência foi de 13,5 acidentes /100 mil habitantes, com a região Centro-Oeste contribuindo com o maior índice do país (33 acidentes/100 mil habitantes). Seguido pela região Norte (24 acidentes/100 mil habitantes), Sul (16 acidentes/100 mil habitantes), Sudeste (13 acidentes/100 mil habitantes), deixando para o Nordeste o título de menor índice (7 acidentes/100 mil habitantes), provavelmente devido à subnotificação, tendo em vista as dificuldades de acesso aos serviços de saúde dessa região8. Dentre os casos em que o gênero da serpente foi informado, Bothrops foi responsável por 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, Lachesis por 1,4% e Micrurus por 0,4%. A letalidade geral foi de 0,45%, sendo maior nos acidentes crotálicos (1,87%)8.

A ocorrência do acidente ofídico está, em geral, relacionada a fatores climáticos e aumento da atividade humana nos trabalhos no campo. A faixa etária acometida varia de 15 a 49 anos, sendo o sexo masculino o mais prevalente. Quanto ao local da picada, o pé e a perna são os mais atingidos.

As serpentes peçonhentas do gênero Bothrops, Crotalus e Lachesis possuem dentes inoculadores bem desenvolvidos e fosseta loreal, um orifício situado entre o olho e a narina, sendo um órgão termorreceptor que indica que a serpente é peçonhenta (por isso é também conhecida popularmente por "serpente de quatro ventas"). As serpentes do gênero Micrurus são uma exceção, pois, apesar de serem peçonhentas, não apresentam fosseta loreal e possuem dentes inoculadores pouco desenvolvidos8.

Identificar o animal causador do acidente é procedimento importante na medida em que possibilita a dispensa imediata da maioria dos pacientes picados por serpentes não peçonhentas, viabiliza o reconhecimento das espécies de importância médica a nível regional e auxilia na indicação mais precisa do antiveneno a ser administrado8.

As serpentes peçonhentas possuem presas anteriores, com orifício central ou sulco; fosseta loreal presente (exceto no gênero Micrurus); pupilas em fenda; cabeça destacada do corpo; a cauda afina abruptamente, possuem hábitos noturnos e costumam ser vagarosas. As serpentes não peçonhentas não possuem presas anteriores e fosseta loreal; possuem pupilas circulares; cabeça não destacada do corpo; a cauda afina progressivamente; hábitos diurnos e costumam ser ágeis8,9.

ACIDENTE BOTRÓPICO

A serpente

As serpentes do gênero Bothrops compreendem cerca de 30 espécies, distribuídas por todo o território nacional. As espécies mais conhecidas são: B. atrox, encontradas no norte do Brasil; B. erythromelas, encontradas na região nordeste; B. neuwiedi, encontradas em todo território nacional, exceto região norte do país; B. jararaca, distribuídas na região sul e sudeste; B. jararacussu, encontradas no cerrado da região central e em florestas tropicais do sudeste e B. alternatus, distribuídas ao sul do país8.

Possuem cauda lisa, não tem chocalho e as suas cores variam muito, dependendo da espécie e da região onde vivem. São popularmente conhecidas como jararaca, ouricana, jararacuçu, urutu-cruzeira, jararaca do rabo branco, malha de sapo, patrona, surucucurana, combóia e caiçaca. Habitam zonas rurais e periferias de grandes cidades, preferindo ambientes úmidos como matas e áreas cultivadas e locais onde haja facilidade para proliferação de roedores (paióis, celeiros, depósitos de lenha). Tem hábitos predominantemente noturnos ou crepusculares8,10.

A peçonha

Sua peçonha possui importantes atividades fisiopatológicas, com lesões locais e destruição tecidual (ação proteolítica ), ativa a cascata da coagulação podendo induzir incoagulabilidade sanguínea por consumo de fibrinogênio (ação coagulante), promove liberação de substâncias hipotensoras e provoca lesões na membrana basal dos capilares por ação das hemorraginas (ação hemorrágica), que associada à plaquetopenia e alterações da coagulação, promovem as manifestações hemorrágicas, freqüentes neste tipo de acidente7,8,9.

É importante ressaltar que a quantidade de veneno inoculado varia de acordo com o tamanho da serpente e, também, se ela atacou alguma outra presa recentemente11.

No caso de serpente do gênero botrópico, há uma diferença entre o veneno do filhote, que é predominantemente coagulante, e do adulto, com maior ação proteolítica e menor ação coagulante9.

Quadro clínico

O quadro clínico caracteriza-se por manifestações locais importantes como dor e edema de caráter precoce e progressivo. Freqüentemente, surgem equimoses, lesões bolhosas e sangramentos no local da picada11.Nos casos mais graves, pode ocorrer necrose de tecidos moles com formação de abscessos e desenvolvimento de síndrome compartimental, podendo deixar como sequelas a perda funcional ou mesmo anatômica do membro acometido8,9.

As manifestações sistêmicas incluem, além de sangramentos em ferimentos cutâneos preexistentes, hemorragias à distância como gengivorragias, epistaxes, hematêmese e hematúria. Podem ocorrer náuseas, vômitos, sudorese, hipotensão arterial e, mais raramente, choque8,12.

As complicações sistêmicas mais comuns são o choque, a insuficiência renal aguda, a septicemia e a coagulação intravascular disseminada, tendo patogênese multifatorial e sendo causas frequentes de óbitos8,13,14.

Diagnóstico

A confirmação laboratorial do acidente pode ser feita através de antígenos do veneno botrópico que podem ser detectados no sangue ou outros líquidos corporais do paciente, através da técnica de ELISA8,11.

A avaliação laboratorial é realizada através do tempo de coagulação (TC), que geralmente está aumentado, bem como o tempo parcial de tromboplastina (PTT). São exames importantes para diagnóstico, conduta e evolução clínica. O hemograma geralmente revela leucocitose com neutrofilia e plaquetopenia de intensidade variável. O exame de urina pode apresentar proteinúria, hematúria e leucocitúria. Outros exames complementares importantes incluem dosagem de eletrólitos, uréia e creatinina, com a finalidade de detectar precocemente distúrbios hidroeletrolíticos e insuficiência renal aguda8,11.

Baseado nas alterações clínicas e laboratoriais e visando orientar a terapêutica a ser empregada, os acidentes botrópicos são classificados em casos leves, moderados e graves (Quadro I).


Tratamento

O tratamento específico consiste na administração o mais precocemente possível, por via endovenosa do soro antibotrópico (SAB) e, na falta deste, das associações antibotrópico-crotálico (SABC) ou antibotrópico-laquético (SABL), em ambiente hospitalar8. Se o TC permanecer alterado 24 horas após a soroterapia, está indicada dose adicional de antiveneno8,15.

As medidas gerais incluem procedimentos indicados para tratamento das alterações locais. O local de inoculação do veneno deve ser limpo com água e sabão. A elevação do membro acometido pouco acima do resto do corpo pode facilitar a diminuição do edema. Analgésicos são comumente necessários nos casos mais graves. Os tecidos necrosados devem ser cuidadosamente debridados e os abscessos drenados. A fasciotomia deve ser realizada se ocorrer síndrome compartimental. Adequada hidratação e profilaxia contra o tétano são medidas complementares importantes. A antibioticoterapia é reservada para casos onde sejam verificados sinais clínicos e laboratoriais de infecção. Considerar a necessidade de cirurgia reparadora nas perdas extensas de tecidos, e preservar o segmento acometido até que se tenha certeza de que nada poderá ser feito para recuperálo ou se está em risco a vida do paciente8,9,11.

O paciente deve permanecer, pelo menos por 72 horas após a picada, internado em hospital para controle clínico e laboratorial11.

ACIDENTE CROTÁLICO

A serpente

As serpentes do gênero Crotalus estão representadas no Brasil por apenas uma espécie, a Crotalus durissus, e distribuídas em cinco subespécies: C. durissus terrificus, encontrada nas zonas altas e secas da região sul oriental e meridional; C. durissus collilineatus, distribuídas nas regiões secas da região centro-oeste, Minas Gerais e norte de São Paulo; C. durissus cascavella, encontrada nas áreas da caatinga do nordeste; C. durissus ruruima, observada na região norte do país; C. durissus marajoensis, observada na Ilha de Marajó8,9.

São popularmente conhecidas por cascavel, boicininga, maracambóia e maracá8,16. São encontradas em campos abertos , áreas secas, arenosas e pedregosas, raramente na faixa litorânea. Não têm hábito de atacar e, quando ameaçadas, denunciam sua presença pelo ruído característico do guizo ou chocalho, presente na cauda8,9,13.

A peçonha

O veneno crotálico quase não produz lesão local, possuindo principalmente três atividades com importância clínica conhecida. Atividade neurotóxica, com ação periférica, causando paralisia flácida da musculatura esquelética, principalmente ocular, facial e às vezes, da respiração, com conseqüente insuficiência respiratória; atividade coagulante, provocando a ocorrência de sangramento e distúrbios da coagulação por consumo de fibrinogênio; e atividade miotóxica sistêmica, causando rabdomiólise generalizada, podendo evoluir para insuficiência renal aguda7,9,15 .

Quadro clínico

O quadro clínico local habitualmente causa manifestações discretas, como dor, eritema, edema, e parestesia local ou regional8,13.

As manifestações sistêmicas gerais incluem mal-estar, prostração, sudorese, náuseas, vômitos, sonolência ou inquietação e sensação de boca seca, que podem aparecer precocemente8.

As manifestações neurológicas surgem nas primeiras horas e melhoram a partir do 2º dia do acidente. O fácies miastênica é característico e denominado "fácies neurotóxico de Rosenfeld", evidenciando ptose palpebral uni ou bilateral, flacidez da musculatura da face, midríase bilateral semiparalítica, oftalmoplegia, visão turva e/ou diplopia, indicando, portanto, o comprometimento do III, IV e VI pares cranianos, diplopia secundária à oftalmoplegia e visão turva. Como manifestações menos frequentes, pode-se encontrar paralisia velopalatina, com dificuldade à deglutição, alterações do paladar e olfato17. A miotoxicidade do veneno é evidenciada por intensa mialgia generalizada, que pode ser acompanhada por discreto edema muscular. A miólise causa mioglobinúria que confere cor avermelhada ou vinhosa à urina16-19. Pode haver incoagulabilidade sanguínea ou aumento do tempo de coagulação em aproximadamente 40% dos pacientes, observando-se raramente gengivorragia7,8,9,15.

As complicações locais são raras, podendo ocorrer parestesias locais duradouras, porém reversíveis após algumas semanas. A principal complicação desse tipo de acidente é a insuficiência renal aguda, com necrose tubular, geralmente de instalação nas primeiras 48 horas7,8.

Diagnóstico

A confirmação laboratorial do acidente pode ser feita através de antígenos do veneno crotálico que podem ser detectados no sangue ou outros líquidos corporais do paciente através da técnica de ELISA8,11.

Na avaliação laboratorial, encontramos como resultado da miólise, valores elevados de creatinofosfoquinase (CPK), desidrogenase lática (LDH) e aspartase-alanino-transferase (ALT). O aumento da CPK é precoce, com pico de máxima elevação dentro das primeiras 24 horas após o acidente. O aumento da LDH é lento e gradual, constituindo-se, pois, um exame para diagnóstico tardio do envenenamento crotálico. O hemograma pode mostrar leucocitose, com neutrofilia e desvio à esquerda. O TC freqüentemente está prolongado. O exame de urina pode apresentar proteinúria discreta, presença de mioglobina, com ausência de hematúria. Elevação dos níveis de uréia, creatinina, ácido úrico, fósforo, potássio e diminuição da calcemia, são observadas na fase oligúrica da IRA8,11.

Baseados nas alterações clínicas e laboratoriais e visando orientar a terapêutica a ser empregada, os acidentes crotálicos são classificados em casos leves, moderados e graves (Quadro 2).


Tratamento

O tratamento específico é a infusão do soro anticrotálico (SAC) ou o soro antibotrópico-crotálico (SABC) endovenosamente, com a dose variando com a gravidade do caso, devendo-se ressaltar que a quantidade a ser administrada na criança é a mesma da do adulto8.

O tratamento geral inclui medidas simples, porém de grande importância para o prognóstico. É recomendado lavar a região afetada com água e sabão, analgesia e profilaxia do tétano, se necessário. Os pacientes devem ser bem hidratados para prevenir a insuficiência renal. A alcalinização da urina e a diurese osmótica estão indicadas nos casos que evoluam com mioglobinúria, no intuito de diminuir a toxicidade renal. A alcalinização é realizada através da administração parenteral de bicarbonato de sódio, monitorizada por controle gasométrico. A diurese osmótica pode ser induzida com a administração endovenosa de manitol a 20%. Em casos de oligúria, indica-se o uso de diuréticos de alça, como a furosemida8,1. Nos casos em que for constatado insuficiência renal aguda (IRA) deve se instalar um tratamento dialítico precoce8,9.

ACIDENTE LAQUÉTICO

A serpente

As serpentes do gênero Lachesis pertencem à espécie L. muta com duas subespécies. É a maior das serpentes peçonhentas das Américas, atingindo até 3,5 m de comprimento e possuem cauda com escamas eriçadas. São popularmente conhecidas por surucucu, surucucu-pico-de-jaca, surucutinga e malha-de-fogo. Habitam áreas florestais como Amazônia, Mata Atlântica e alguns enclaves de matas úmidas do Nordeste8.

A peçonha

O veneno laquético possui as três atividades principais do veneno botrópico, com quadro clínico semelhante, entretanto, rotineiramente mais grave. O veneno laquético possui ação proteolítica, produzindo lesão tecidual; ação coagulante, causando afibrinogenemia e incoagulabilidade sanguínea; ação hemorrágica, pela presença de hemorraginas e ação neurotóxica, com ação do tipo estimulação vagal, alterações de sensibilidade no local da picada, da gustação e da olfação8,9.

Quadro clínico

As manifestações clínicas são semelhantes às descritas no acidente botrópico, predominando a dor e o edema, que podem progredir para todo o membro acometido. Podem surgir equimose, necrose cutânea, vesículas e bolhas de conteúdo seroso ou sero-hemorrágico nas primeiras horas do acidente. As manifestações hemorrágicas limitam-se ao local da picada na maioria dos casos8.

As manifestações sistêmicas incluem hipotensão arterial, tonturas, escurecimento da visão, bradicardia, cólicas abdominais e diarréia ("síndrome vagal")8,9.

As complicações locais descritas no acidente botrópico, como síndrome compartimental, necrose, infecção secundária, abscesso e déficit funcional, também podem estar presentes nesse tipo de acidente8.

Diagnóstico

Hemograma, dosagens séricas de uréia, creatinina e eletrólitos são indicados dependendo da evolução do paciente. A determinação do tempo de coagulação (TC) é importante medida auxiliar no diagnóstico e acompanhamento dos casos. O ELISA vem sendo utilizado em caráter experimental, não estando disponível na rotina nesse tipo de envenenamento8.

Por serem serpentes de grande porte considerase grande a quantidade de peçonha inoculada em um acidente (Quadro 3).


Tratamento

O tratamento específico consiste na infusão endovenosa do soro antilaquético (SAL) ou antibotrópico-laquético (SABL). Na falta dos soros específicos, o tratamento deve ser realizado com soro antibotrópico, apesar deste não neutralizar de maneira eficaz a ação coagulante do veneno laquético8,9. As medidas gerais são as mesmas indicadas para o acidente botrópico.

ACIDENTE ELAPÍDICO

A serpente

As serpentes do gênero Micrurus compreendem 18 espécies distribuídas em todo o território brasileiro. As espécies mais comuns são a M. corallinus, encontrada na região sul e litoral da região sudeste; M. frontalis, também encontrada nas região sul, sudeste e parte do centro-oeste e M. lemniscatus, distribuídas nas regiões norte e centro-oeste.

Apresentam anéis vermelhos, pretos e brancos em qualquer tipo de combinação. Consideradas animais de pequeno a médio porte são conhecidas por coral, coral verdadeira, ibiboboca ou boicorá. Estas serpentes são bem menos agressivas, tem habitat subterrâneo, apresentam presa inoculadora pequena e não tem a mesma possibilidade de abertura da boca que as outras serpentes. Raramente causam acidentes, e quando o fazem, geralmente picam os dedos da mão de indivíduos que as manipulam8,9,11.

O mesmo padrão de coloração possuem as falsas-corais, porém a configuração dos anéis não envolve toda a circunferência e são desprovidas de dentes inoculadores, portanto, não peçonhentas8.

A peçonha

O veneno elapídico possui constituintes tóxicos denominados de neurotoxinas, substâncias de baixo peso molecular que são rapidamente absorvidas e difundidas para os tecidos, explicando a precocidade dos sintomas de envenenamento8,11. Este veneno produz bloqueio neuromuscular (pós-sináptico) levando à paralisia muscular, competindo com a acetilcolina (Ach) pelos receptores colinérgicos, atuando de modo semelhante ao curare. O uso de substâncias anticolinesterásicas (neostigmina) antagonizam esse efeito, levando a uma rápida melhora da sintomatologia. A ação pré-sináptica, presente na M. corallinus e alguns viperídeos, atua na junção neuromuscular, bloqueando a liberação de Ach pelos impulsos nervosos, impedindo a deflagração do potencial de ação. Nesses casos, substâncias anticolinesterásicas não antagonizam esse mecanismo8,9,11.

Quadro clínico

O quadro clínico caracteriza-se por sintomas que surgem precocemente, em menos de uma hora após a picada. Há discreta dor local, geralmente acompanhada de parestesia com tendência a progressão proximal. As manifestações sistêmicas incluem vômitos, fraqueza muscular progressiva, ptose palpebral, oftalmoplegia e a presença de fácies miastênica ou "neurotóxica". Também podem surgir mialgia localizada ou generalizada, dificuldade para se manter na posição ereta, dificuldade para deglutir, devido à paralisia do véu palatino. A paralisia flácida da musculatura respiratória compromete a ventilação, podendo evoluir para insuficiência respiratória aguda e apnéia, semelhante ao que ocorre no acidente crotálico8. O acidente elapídico é considerado muito grave, podendo causar a morte da vítima em curto intervalo de tempo8,9.

DIAGNÓSTICO

Nos acidentes laquéticos não há uma avaliação laboratorial específica para o diagnóstico.

TRATAMENTO

O tratamento específico é a administração, por via endovenosa do soro antielapídico (SAE). Todos os casos que apresentam manifestações clínicas são considerados potencialmente graves (Quadro 4).


O tratamento geral baseia-se numa adequada assistência ventilatória, boa hidratação, analgesia, cuidados locais e antibioticoterapia, se necessário. Os anticolinérgicos (neostigmina), por atuarem como antagonistas da ação pós-sináptica, podem ser benéficos a pacientes picados por espécies que possuem neurotoxinas pós-sinápticas no veneno. Cada administração de neostigmina deve ser precedida de uma injeção endovenosa de 0,6mg de sulfato de atropina para se obter o aumento da freqüência cardíaca e evitar a hipersecreção8,9.

PROGNÓSTICO E PREVENÇÃO

A literatura científica faz referência a vários fatores que interferem na gravidade dos acidentes ofídicos e que estão relacionados à serpente, ao paciente e à assistência médica prestada.

O prognóstico pgeralmente é bom nos acidentes classificados como leves e moderados e nos pacientes atendidos nas primeiras seis horas após a picada8.

Observa-se que pacientes vítimas de picada na perna, que utilizam torniquete, atendidos com mais de 6 horas do acidente, com administração incorreta do soro antiofídico, apresentam mau prognóstico, evoluindo com complicações que freqüentemente levam à óbito20,21.

A aplicação de substâncias como fumo, esterco, café e alho no local da picada ou ingestão oral de pinga, álcool ou querosene pelo paciente devem ser desaconselhadas. Deve ser evitada a incisão e a sucção do local da picada, por favorecer a infecção secundária9.

Vale ressaltar a importância e a necessidade de um tratamento precoce e agressivo para pacientes vítimas de acidente ofídico, utilizando, sempre que possível, a via endovenosa para administração de soro específico, em doses eficazes, após a identificação correta da serpente10,22.

A utilização de equipamentos individuais de proteção como sapatos, botas, luvas de couro e outros pode reduzir em grande parte esses acidentes.

Além da importância médica e epidemiológica, algumas questões sociais e econômicas envolvem esse problema, já que atinge indivíduos jovens e do sexo masculino, que representam população economicamente ativa do país.

A inclusão de acidente ofídico na lista de doenças ocupacionais com adequada vigilância poderia representar um avanço em saúde pública, não somente pela prevenção, mas também para um precoce e correto encaminhamento dos que são acidentados, diminuindo a mortalidade e inutilidade temporária e, até algumas vezes, permanente causada por essa condição.

Artigo recebido: 02/09/1999

Aceito para publicação: 03/04/2000

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    Correspondência:
    Av. Multirão, 1868 – Setor Bueno
    Cep: 74215-240 – Goiânia – GO
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Mar 2001

    Histórico

    • Aceito
      03 Abr 2000
    • Recebido
      02 Set 1999
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